segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Educação e mobilidade social

Escrito por Valério Arcary* Uma das premissas do liberalismo foi a igualdade jurídica dos cidadãos. A lei seria igual para todos. Direitos e deveres iguais, ainda que em uma sociedade de desiguais, seria a utopia possível. A promessa dos governos que se sucederam no poder, no Brasil, depois do fim do regime militar foi, contudo, mais audaciosa: afirmaram durante as últimas décadas de regime democrático-liberal que a educação seria uma via de afirmação de maior justiça social: “estudem e trabalhem duro, e terão um futuro superior ao dos vossos pais”. Os defensores de um capitalismo mais ou menos regulado, fossem liberais ou reformistas, com inspiração na experiência norte-americana ou europeia, presumiam que a escola poderia mudar o Brasil diminuindo as desigualdades sociais. Defendiam que através da meritocracia, portanto, da igualdade de oportunidades, a equidade, existiria a possibilidade de melhorar de vida. Toda a promessa da meritocracia consistia na premissa de uma justiça universal. Expliquemo-nos: sendo as oportunidades de educação e trabalho muito menores que as necessidades, seria justo regular a seleção dos mais capazes, mais tenazes, mais inteligentes, através de obstáculos ou de barreiras que deveriam ser universais. A equidade era o único horizonte possível, porque presumiam que a igualdade social seria uma utopia. Educação e trabalho para todos garantiriam, esperava-se, uma maior coesão social à democracia no Brasil, na periferia do capitalismo. A democracia liberal afiançaria, gradualmente, prosperidade. Seria uma questão de paciência. Os mais esforçados teriam uma melhor educação, conseguiriam melhores empregos e a mobilidade social premiaria o talento e a perseverança. Outra forma de ilusão gradualista nas perspectivas de justiça social nos limites do capitalismo foi a esperança de que uma população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país. Se fosse assim, a Argentina ou a Coréia do Sul, dois exemplos de sociedades que conquistaram - a primeira no passado, a segunda mais recentemente - índices elevados de escolaridade, não seriam infernos de desigualdade social para os trabalhadores. Todas as promessas de que a educação seria o instrumento meritocrático que permitiria que, nos países de inserção periférica, cada um tivesse a sua justa função na sociedade, desmoronaram com a crise da globalização e dos ajustes neoliberais do final dos anos noventa. Fora das prioridades Mas apesar do discurso meritocrático, a educação esteve longe de ser a política social mais importante do último período histórico. Em São Paulo, o mais rico Estado, construíram-se muito mais prisões do que universidades. Liberais e reformistas, quando no governo, insistiram que a diminuição da desigualdade não passava por retirar dos mais ricos para os mais pobres, mas elevando o padrão de vida dos trabalhadores, sem prejudicar os capitalistas, que não poderiam ser contrariados para favorecer a disposição de investimento. No entanto, todos os levantamentos estatísticos disponíveis a partir do censo do IBGE de 2000 e dos PNAD’s (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios) dos anos seguintes informam que, apesar de melhoras quantitativas modestas dos índices educacionais, a situação da educação pública é pouco animadora, e a situação social permanece crítica. A expansão da rede pública foi significativa nos anos sessenta, setenta e oitenta, mas não diminuiu a desigualdade social. Ao contrário, a desigualdade aumentou entre os anos sessenta e os anos noventa, mesmo quando o PIB brasileiro duplicava no intervalo de uma década, como entre os anos trinta e setenta. O aumento da escolaridade média aconteceu muito tarde em relação à velocidade da industrialização, e foi muito lento. O custo da universalização da educação revelou-se muito alto. O capitalismo brasileiro foi incapaz de garantir um financiamento do Estado suficiente para o custeio da escola obrigatória de qualidade universal. Depois, a partir dos anos noventa, vieram as políticas sociais focadas – primeiro em um governo do PSDB em Campinas, depois no de Cristóvão Buarque eleito pelo PT em Brasília e, finalmente com o de FHC - que os governos Lula e Dilma preservaram e aumentaram em escala. No intervalo que vai de 1980 a 2008, o PIB brasileiro duplicou, se consideramos a paridade do poder de compra com um vetor de ajuste, mas a população também quase dobrou, ou seja, a renda per capita permaneceu estagnada. Considerando estes números frios na longa duração, o Brasil nem avançou, nem recuou: transformou-se em uma sociedade de capitalismo de baixo crescimento. Mobilidade congelada A mobilidade social, ou seja, a esperança de ascensão social de uma geração para outra permanece muito pequena. Os estudos destes últimos anos que descobrem um Brasil de maioria de “classe média”, porque um pouco mais de 50% da população teria renda mensal familiar igual ou superior a R$1.200,00, ou seja, adquiriram a capacidade de se endividar para comprar alguns bens duráveis com a expansão do crédito consignado, são insuficientes para justificar otimismo. A desigualdade social brasileira continua entre as mais elevadas do mundo, e a participação do trabalho sobre o conjunto da riqueza nacional diminuiu de mais 50% antes de 1964, para menos de 40% nos dias de hoje. Mais de vinte anos de democracia e de alternância no poder municipal, estadual e nacional entre a centro-direita e a centro-esquerda, que tiveram oportunidade de aplicar as mais variadas políticas econômicas e os mais diferentes projetos educacionais, não trouxeram maior mobilidade social. Segundo os dados do IBGE, os 10% mais ricos da população ainda são donos de 46% do total da renda nacional. Já os 50% mais pobres ficam com apenas 13,3%. O resumo da ópera é que Brasil entrou em decadência, e a escola pública se perverteu como instrumento da ascensão social. Seria ingênuo imaginar que esta degradação da promessa de equidade meritocrática pela educação não teria consequências nas escolas: desmotivação dos alunos e desmoralização dos professores. O lugar da escola hoje é um encontro de sociabilidade, mas não é um encontro mais com o tesouro científico e o repertório cultural que a humanidade construiu. Os professores se sentem tristes, sendo a última linha de defesa da escola pública. Nós sentimos essa angústia, que é reconhecer que a escola agoniza. Nós somos, contudo, os guardiões de uma promessa: que através da arte, da cultura, da ciência que as gerações anteriores nos legaram, poderemos construir um mundo melhor. * Professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), e doutor em História pela USP

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